A Divina Comédia - Casa de Euterpe


                

O AUTOR

             Dante Alighieri foi um dos maiores vultos intelectuais da época pré-renascentista. Contemporâneo de personagens célebres da Europa, como Giotto, Marco Polo e Afonso X, é considerado como o autor mais importante da língua italiana.
            Viveu em uma época conturbada na península itálica, as cidades guerreavam entre si e dentro das próprias cidades não havia a menor coesão política.
            Nascido na cidade de Florença em maio de 1265, sofreu conturbações e incompreensões de seus conterrâneos. Aos nove anos avista pela primeira vez a pequena Beatriz, poucos meses mais nova do que ele e que irá ser a musa do futuro poeta. Aos dezoito anos, volta a encontrar Beatriz que o inspira para a criação da poesia.
            Em 1290 morre Beatriz, fato que lhe causa grande dor e o faz procurar conforto na leitura de autores clássicos. Mais tarde, entra para a política e procura fazer prevalecer os interesses da cidade. Por isso, toma o partido dos Brancos, contra Bonifácio VIII, dos Negros.
            Viveu os últimos vinte anos de sua vida no exílio, peregrinando de cidade em cidade, vivendo quase de esmolas, vítima de ódios políticos. Os últimos dias de sua vida, passa na cidade de Ravena, onde morre em 13 de setembro de 1321.

A OBRA

             Tendo sido escrita entre 1307 e 1321, em qualquer época A Divina Comédia é um poema atual, cujas considerações acerca do destino humano falam de perto à consciência de todos, gerando reflexões.
             Seu título original era Comédia e a partir de Giovanni Boccaccio, seu contemporâneo e biógrafo, receberá o adjetivo Divina. Ter dado o título de Comédia à sua obra fundamental deu margem a mal-entendidos: não se tratava de associar à fala vulgar um gênero baixo. Esse gênero literário, desde Aristóteles, permitia uma transformação, a passagem de um começo doloroso a uma conclusão feliz.
             Essa obra é classificada como um poema didático-alegórico: didático, porque tem uma finalidade educativa e alegórico, porque os ensinamentos são ministrados por uma série de símbolos, ou seja, símbolos materiais que têm significação espiritual. Assim, A Divina Comédia encontra nos símbolos um valioso instrumento de expressão. A riqueza de alegorias permite interpretações diversas a respeito do significado do texto.
             O próprio Dante, em sua obra filosófica Convívio, distingue entre os sentidos literal, alegórico, moral e anagógico (ou místico) de qualquer passagem nas escrituras. Ainda, ao escrever ao senhor de Verona (Epístola, XIII, VII-20-22) afirmou que a Comédia deveria ser entendida de mais de um modo, pois dera-lhe quatro sentidos superpostos: o literal ou histórico, o moral, o figurado ou alegórico e o anagógico ou místico.
             Tomemos, por exemplo, uma afirmação como esta: Jesus Cristo se levantou dentre os mortos. O significado literal é obvio: um personagem histórico, de nome Jesus, que foi identificado como Cristo (o Messias), levantou-se, vivo, dentre os mortos. Alegoricamente, a leitura cristã normal seria: de maneira semelhante, nós também devemos nos levantar da morte para a vida eterna. E a lição moral seria esta: que nossas mentes se desviem da contemplação das coisas mortas para habitar aquilo que é eterno. A leitura anagógica, ou mística, deve se referir àquilo que não é passado nem futuro, mas transcende o tempo e é eterno, que não está neste nem naquele, mas em toda parte, em tudo, agora e sempre. Assim, pelo que parece, o quarto nível de significado é o de que na morte – ou neste mundo da morte – está a vida eterna; de que a mente, ao contemplar as coisas mortais, deve reconhecer nelas o eterno.
              Assim, em relação à Comédia, podemos dizer que a interpretação:
  • literal: considera apenas a aventura de Dante pelos três reinos do pós-vida;
  • alegórica: destaca o sentido de purificação[1] progressiva do espírito ao longo da jornada rumo a Deus;
  • moral: focada na rigidez de costumes e na exaltação dos valores do Bem, da Verdade e da Justiça;
  • anagógica ou mística[2]: ressalta a passagem de toda a humanidade da escravidão do pecado à salvação, por meio da redenção. Permite passar do sentido literal ao sentido místico.
Enredo

           Dante fez uma viagem ao mundo do além. Orientando pelo poeta Virgilio, conhece o Inferno e o Purgatório e depois, guiado por Beatriz, visita o Paraíso. Ao longo do percurso Dante encontra vários conhecidos seus e conversa com alguns deles. O Inferno é um vale nas entranhas da terra formado por vários círculos que vão se afunilando: quanto mais baixo estão, maiores os pecados daquelas almas que ali padecem grandes suplícios. Satanás, com quem se encontram, tem três caras, uma só cabeça e enormes asas de morcego.
          Saem do Inferno e sobem a montanha do Purgatório. Passam pelos sete círculos que representam os sete pecados capitais. Banhando-se em águas sagradas, na saída do Purgatório, são absolvidos de toda a culpa.
           Dante entra no Paraíso guiado por Beatriz, e aí encontra santos, sábios, teólogos, e outros espíritos. Segue com ela até o Empíreo, onde encontra São Bernardo que passa a ser seu guia. No final da jornada, Dante vislumbra Deus em toda a sua glória.

A ESTRUTURA DA COMÉDIA

          A Divina Comédia é constituída segundo uma rígida simetria, foi escrita em italiano vulgar, em versos hendecassílabos em terza rima, isto é, tercetos nos quais o primeiro verso rima sempre com o terceiro. São três partes, tendo a primeira, o Inferno, 4.720 versos; o Purgatório, 4.755, o Paraíso, 4.758, somando 14.233 versos.
          Cada parte ou cantica (Inferno, Purgatório e Paraíso) divide-se em 33 canti ou capítulos. Um canto à moda de introdução ao tema geral incluído na primeira parte, dá ao Inferno 34 cantos, somando o Poema 100 cantos. Além disso, as três partes terminam com a palavra stelle, “estrelas”.
          A estrutura da Comédia assenta-se em três sistemas: o físico, o ético e o histórico-político, cada um deles entendido como síntese de diversas tradições.
          O sistema físico provém de Ptolomeu, adaptado aos dogmas do aristotelismo cristão de Tomás de Aquino, Alberto Magno e Brunetto Latini, que foi exímio estudioso e preceptor de Dante.
           Segundo esse sistema, o globo ocupa o centro do Cosmos e em volta dele giram nove esferas celestes concêntricas. A décima esfera (empíreo) está em repouso e nela se encontra a morada de Deus.
           Só o Hemisfério Norte do globo é habitado. Os limites dele são os rios Ganges e Gibraltar. No centro está Jerusalém.
           No fim no Hemisfério Norte, que se estreita como um funil, há o Inferno. No centro exato da terra, mora Lúcifer, que empurrou para fora uma montanha que cobre o Hemisférico Meridional: é o Purgatório.
            No cume da montanha há o Paraíso terrestre, idílico lugar de passagem das almas enviadas ao céu.
            Outro aspecto importante da narrativa é a Teoria da Imortalidade, formulada por Platão. Tal teoria supõe a viagem da alma humana após a morte do homem, aos céus específicos de cada planeta, de onde teriam vindo desde o princípio.
             Para sua viagem, Dante convida três personagens de seu imaginário: o poeta Virgílio (Inferno e Purgatório), Beatriz (Céu) e São Bernardo (Empíreo).

Inferno

            No inicio de A Divina Comédia, Dante está perdido em uma selva escura, onde encontra o poeta latino Virgílio, cujo espírito foi enviado por Beatriz para buscá-lo. O trajeto das duas personagens se inicia no Inferno, que corresponde à primeira parte da obra.
            Situado embaixo de Jerusalém, estreitando-se até o centro da Terra, principia-se por um vestíbulo ou ante-inferno em que estão as almas recusadas por Deus e pelo Diabo (Ignavos e Omissos, os “que não têm esperança de morte”). Em seguida sucedem-se nove círculos descendentes: quanto mais baixo, pior a pena que, em cada caso, obedece à lei do contrapasso ou da “retribuição apropriada” (lei de causa e efeito). A pena é atribuída guardando relação com o pecado, por analogia ou contraste.

            Os círculos estão assim constituídos:

  • Primeiro círculo – Limbo: dos não batizados;
  • Segundo ao Quinto círculos: os Incontinentes, assim distribuídos:
  •  2º: os Luxuriosos - arrastados em um vendaval eterno;
  •  3º: os Gulosos - arranhados eternamente por Cérbero, sob uma chuva incessante;
  •  4º: os Avarentos e os Pródigos - irreconhecíveis, chocando-se e empurrando pesos enormes;
  •  5º: os Iracundos, os Soberbos e os Preguiçosos - submersos em detritos fétidos.
  • Sexto círculo: os Hereges - confinados em túmulos de chamas;
  • Sétimo círculo: os Violentos. É divido em três girões:
  •  1º: os Violentos contra o próximo: homicidas, tiranos, predadores - imersos em um rio de sangue;
  •  2º: os Violentos contra si próprios: suicidas e perdulários - transformados em arbustos vivos;
  •  3º: os Violentos contra Deus, a natureza e a arte: blasfemos, sodomitas, usurários[3] - deitados, correndo ou encolhidos sob uma chuva de fogo.
  • Oitavo Círculo (Malebolge): os Fraudulentos. É dividido em dez bolges (valas) que acolhem respectivamente:
  • 1º: Sedutores e Alcoviteiros - chicoteados por diabos chifrudos;
  • 2°: Aduladores - imersos em esterco;
  • 3º: Simoníacos[4] - postos de cabeça para baixo com as plantas dos pés em brasa;
  • 4º: Adivinhos, Astrólogos, Bruxas - andando com os pés amarrados e o rosto sempre virado para trás;
  • 5º: Prevaricadores[5] - mergulhados em piche fervente;
  • 6º: Hipócritas - acometidos de lepra ou sarna;
  • 7º: Ladrões - metamorfoseados em serpentes;
  • 8º: Conselheiros de fraude - presos dentro de uma bolha de fogo;
  • 9º: Semeadores de escândalos e cismas - horrendamente mutilados;
  • 10º: Falsários de metais, de moedas, de pessoas e de palavras - acometidos de hidropsia, presas de febre ardente ou hidrófobos.
  • Nono Círculo: é o dos Fraudulentos contra quem confia. Acolhe os Traidores de todos os gêneros, distribuídos em cada uma das quatro zonas concêntricas a um lago gelado (o Cocito), cada qual com um nome:
  • Caina: contém os traidores dos parentes - imersos em gelo feitos rã, só com o nariz de fora;
  • Antenora: os traidores da pátria - mergulhados em gelo, apenas com o rosto de fora, exposto ao vento;
  • Tolomea: os traidores dos hóspedes - deitados de costa no gelo;
  • Guidecca ou Judeca: os traidores dos benfeitores - congelados feitos arbustos de vidro.
            Depois dessa última zona fica a Dite, a cidade de gelo na qual está imerso Lúcifer, até o peito, com seis pares de asas cujo movimento congela o Cocito.

Purgatório

            Ao saírem do Inferno, subindo por um leito de rio, chegam Dante e Virgílio ao pé da montanha do Purgatório e reveem as estrelas. Catão, o famoso legislador da Roma antiga, lhes indica o caminho.
            No Purgatório a pena serve para curar a alma da propensão ao pecado, de vez que a destinação a ele significa o perdão. Para a aplicação da pena, foi observado o principio do contraste.
             Ao contrário do Inferno, que tem forma de funil, o Purgatório é uma montanha, composta, como o Inferno, por girões[6], mas aqui ascendentes. Cada um desses girões tem uma cornija (terraço) onde estão as almas que se arrependeram em vida, à espera de sua admissão no Céu.
             Na extremidade inferior da montanha há o Antepurgatório, com os espíritos que só se arrependeram no final da vida, os Negligentes e os Excomungados.
         
             Após o Antepurgatório, temos:

  • 1º Girão: os Soberbos - carregando pesados blocos de pedra;
  • 2º Girão: os Invejosos - que têm as pálpebras costuradas com arame;
  • 3º Girão: os Iracundos;
  • 4º Girão: os Preguiçosos;
  • 5º Girão: os Avarentos e os Pródigos - deitados de bruços, com os pés e as mãos atados;
  • 6º Girão: os Gulosos - sofrem de fome e sede insaciáveis;
  • 7º Girão: os Luxuriosos - toda a cornija[7] desse girão está envolta em fogo.
              Depois do último Girão há o Paraíso terrestre. Virgílio separa-se de Dante, assegurando-lhe que do outro lado do fogo do último Girão, o poeta encontrará Beatriz.

Paraíso

             O esquema do Paraíso permite uma visão de conjunto da cosmologia medieval, em que cruzam as concepções de Ptolomeu e da teologia cristã. A Terra está imóvel no centro de um universo composto por nove céus, que correspondem às órbitas de sete planetas (Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno, além da Lua), às quais se seguem o céu das estrelas fixas e o Primum Mobile (ou céu cristalino) – último círculo da matéria.
             Dessa forma, no Paraíso, em volta do globo terrestre, as esferas se organizam segundo os corpos celestes nelas situados. Envolvendo a Terra há a esfera do ar, a esfera do fogo, depois da qual se iniciam os céus:

  • 1º - Céu da Lua (regido pelos Anjos). Aí estão as almas que, votadas ao bem, foram impedidas de prosseguir em sua vocação religiosa;
  • 2º - Céu de Mercúrio (governado pelo Arcanjos), onde ficam os espíritos que fizeram o bem por desejo de glória;
  • 3º - Céu de Vênus (regido pelos Príncipes), espíritos amantes;
  • 4º - Céu do Sol (regido pelas Potestades), espíritos sapientes;
  • 5º - Céu de Marte (regido pelas Virtudes), espíritos que lutaram pela fé;
  • 6º - Céu de Júpiter (governado pelas Dominações), espíritos justos;
  • 7º - Céu de Saturno (regido pelos Tronos), espíritos contemplativos;
  • 8º - Céu das estrelas fixas (regido pelos Querubins), ao qual se ascende por uma escada de ouro;
  • 9º - Primum móbile (governado pelos Serafins e contém os sete coros angélicos). É cristalino e invisível, mas o desejo da união com Deus imprimi-lhe um movimento mais rápido. Ele comunica seu movimento às esferas inferiores. Até aqui, Dante é conduzido por Beatriz;
  • 10º - Empíreo: o céu em repouso. A partir daqui, São Bernardo é o guia. Lá chegando, já com outra visão, própria do meio imaterial, feita de pura luz, Dante vê a Rosa Mística, onde se reúnem os Beatos, entre os quais agora está Beatriz, que ele poderá ver pela última vez. Aqui, Dante tem a visão do mundo espiritual.
               No centro da Rosa Mística (formada por anjos) fica a Virgem Maria, com todo o seu fulgor.
               Ainda acima, contida em três círculos de fogo, a Santíssima Trindade, Deus envolto por nove coros (círculos) angélicos (Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades, Príncipes, Arcanjos e Anjos), constituídos não por espíritos humanos, mas por anjos criados por Deus.
               Dante confessa que seu entendimento não pode apreender o significado de quanto vê. Conforma-se, proclamando que, afinal, seu querer e sua mente são movidos pelo mesmo amor divino que o Sol e as estrelas. O poeta cumpriu seu destino: viu a Suprema Potestade, reencontrou o bom caminho.

SIMBOLOGIA

             A simbologia de A Divina Comédia é muito grande e podemos analisar essa obra sob diversas perspectivas – de acordo com o próprio Dante, conforme já mencionado:

  1. literalmente: considera apenas a aventura de Dante pelos três reinos do pós-vida;
  2. alegoricamente: destaca o sentido de purificação[8] progressiva do espírito ao longo da jornada rumo a Deus;
  3. moralmente: focada na rigidez de costumes e na exaltação dos valores do Bem, da Verdade e da Justiça;
  4. anagógicamente[9] (mística): ressalta a passagem de toda a humanidade da escravidão do pecado à salvação, por meio da redenção. Permite passar do sentido literal ao sentido místico.
             A interpretação literal foi vista no momento em que narramos a viagem dantesca, bem como a moral, quando destacamos os vícios que subjazem no Inferno e no Purgatório e a necessidade que tem a Alma de suplantá-los para chegar ao Paraíso. A interpretação moral enfoca sempre uma lição. No caso, a de que o Bem, a Verdade e o Justo devem prevalecer na trilha para o Paraíso.
             Restam, portanto, a alegórica e a anagógica ou mística. Ambas são complementares, pois ao destacar o sentido de purificação progressiva do espírito, possibilita-se o abandono do sentido literal do texto para alcançar seu sentido místico. Nessas perspectivas – alegórica e anagógica – duas podem ser as interpretações.
              Em uma delas, podemos entender as três etapas da viagem dantesca – Inferno, Purgatório e Paraíso – como relativas à saga do homem para o alcance da plenitude espiritual (Graal) durante sua vida terrena. Nesse aspecto, Dante pode ser comparado com o Arjuna indiano ou com o Hércules grego.
             Antigas culturas que se perderam na história reconheciam sete componentes no homem, sete diferentes motores que animam o ser vivo: étero-físico, energético, emocional, mental concreto, mental puro, intuicional e espiritual.
             Os quatro primeiros princípios constituem a personalidade humana, a vestimenta, o mutável, o que nasce e morre e que é diferente em cada ser, tal como são distintas as roupagens com que cobrimos o nosso corpo. Somente os três últimos, a Tríade ou a Individualidade constitui o indivíduo que não é afetado, nem pelas transformações, nem pela vida ou pela morte. Trata-se do Ser, ente eterno, que é e continuará sempre a sê-lo.
              Assim, o inferno (subterrâneo), na simbologia, é o local das ricas jazidas, o lugar das metamorfoses, das passagens da morte à vida, da germinação. Quando nesse estado, cabe ao homem conhecer sua personalidade em todos os seus aspectos (étero-físico, vital, astral e mental). É quando o homem toma contato com a sua sombra, seus vícios, seus defeitos e identifica-os. Isso, por vez, traz sofrimento, dor, por isso o inferno, mas é a partir dessa identificação que se pode passar à próxima etapa.
              Dessa forma, o símbolo do purgatório pode ser tomado como o mar, à imagem de uma travessia que pode ser, para o homem, a ocasião do retorno ao caminho correto. Ou seja, a ponte entre o inferno e o paraíso. Conhecida as ranhuras da personalidade, cabe ao homem harmonizá-las. Ao propor-se a isso, inicia-se o processo de construção da ponte para o paraíso. Aqui, podemos lembrar, da tradição septenária, Antahkarana que liga a personalidade à Tríade imortal. Este é um processo longo e diário.
               Construída a ponte, harmonizada a personalidade, chega-se à Tríade imortal, à morada da Alma. Assim, o paraíso é a sede da imortalidade. É o centro imutável, o coração do mundo, o ponto de comunicação entre a Terra e o Céu. É menos lugar que estado: é a obtenção de um estado central, a partir do qual se pode fazer a ascensão espiritual. É quando se faz contato com o Ego, com o Divino dentro de cada homem. É a grande conquista humana: o domínio da personalidade e a partir daí, a conquista da plenitude espiritual.
               Todo esse processo não ser feito abruptamente, não se dá de um salto, mas por etapas. Por isso, os múltiplos e hierarquizados céus simbolizam estados alcançados sucessivamente. Significam que a manifestação direta da transcendência, do poder, da perenidade, da sacralidade, dos poderes superiores do homem, da consciência dá-se degrau a degrau. Indicam que o alcance da plenitude espiritual se dá passo-a-passo, paulatinamente.
                A outra maneira de vermos a simbologia contida na Comédia - ainda sob os aspectos alegórico e anagógico - é por meio dos estados da alma quando abandona sua roupagem física, quando morre a personalidade.
                Todas as formas mentais com as quais morremos, acompanha-nos na próxima encarnação, bem como, imediatamente, no pós-morte. Assim, é esse estado que determina a situação da Alma, após a morte da personalidade. Dependendo dessas formas mentais, vamos nos encontrar em uma ou outra situação após o desencarne.
                Quando o homem morre, seus três princípios inferiores – o corpo, a vida e o veículo desta, isto é, o corpo astral ou o duplo do homem vivente – deixam-no para sempre. E então, seus quatro princípios – o princípio central ou do meio, a alma animal ou kama-rupa juntamente com aquilo que assimilou de Manas inferior, e a tríade superior – encaminham-se para o Kama-loka. Esta é uma localidade astral, é o purgatório da teologia, habitada pela maioria de todos os seres que viveram, animais inclusive, esperando por sua segunda morte. Para os animais, esta vem com a desintegração e completo desaparecimento da última de suas partículas astrais. Para o eidolon humano, ela começa quando a tríade Atma-Budhi-Manas “separa-se”, como se diz, de seus princípios inferiores, ou do reflexo de sua ex-personalidade, caindo no estado devachânico.
                 O Devachan é, na alegoria da Comédia, o Paraíso. A bem-aventurança daquele que está no Devachan consiste em sua total convicção de que ele nunca deixou a Terra e que não há alguma tal coisa como a morte. Assim, por exemplo, a consciência espiritual post-mortem da mãe representará para ela uma vida em que está rodeada por seus filhos e por todos aqueles a quem amou; que nenhuma lacuna e nenhuma ligação faltarão para atingir em seu estado desencarnado a mais absoluta e perfeita felicidade. É o chamado o céu superior, para onde vão apenas aqueles que geraram experiências no Ego (idéias próprias). Além dele, há o céu inferior que também é uma realidade mental e é habitado por aqueles que exercitaram a caridade, fizeram o bem de maneira geral. É um estado de Manas inferior.
                  Nenhum desses mundos são subjetivos, porém são metafísicos (além do físico). O pensamento abstrato, corretamente dirigido, leva ao mundo metafísico que é mais real que o mundo físico (concreto), pois aquele é causa deste. O elemento subjetivo é aquilo que introduzimos tanto no metafísico, quanto no físico. Somente os pensamentos abstratos, que se relacionam com o metafísico, importam para o Ego.
                Assim, o trabalho da personalidade é transformar experiências em faculdades para o Ego. Dessa feita, a saga de A Divina Comédia, face a essa interpretação, é a purificação dos veículos do homem para que sua Alma atinja mundos metafísicos e ali permaneçam em repouso até a próxima reencarnação.
                E ai surge a pergunta: e o Inferno? Onde está situado? Por pior que nos pareça, o Inferno, nós mesmos o criamos durante nossa encarnação todas as vezes que não nos voltamos para o centro de nós mesmo. Esse centro é nosso Ego imortal. Todas as vezes que nos afastamos dele, vivemos no Inferno, pois resta a personalidade desfragmentada, distante do Ego, trabalhando para si mesma como autômato robô.
                Exemplo disso é o trecho extraído do Canto VI, do Purgatório, de A Divina Comédia: “(...) Ao anjo que meu espírito recolhia, o Demônio bradava: ‘Ó tu que vens do Céu, porque me privas deste? Dele me toma a parte imortal, por graça da última lágrima derradeira, mas sobre a parte corruptível exercerei um bom governo’.”

CONCLUSÃO

                Qualquer que seja a perspectiva pela qual se escolhe interpretar a obra de Dante – a luta da personalidade ou as condições do homem sem o corpo físico -, a conclusão é a mesma: vai do centro da Terra, onde se encontra Lúcifer, até o domínio de Deus - é o itinerário das trevas para a luz.
                A progressiva liberação das paixões, pela prática das virtudes, culmina na felicidade celestial. Dante induz o leitor a uma reflexão a respeito dos males de seu tempo (e de todos os tempos), propondo implicitamente as soluções: o reencontro do caminho moral e espiritual.
                A Comédia é divina, posto que seu fim último é o acesso à contemplação de Deus, mas antes de tudo é humana, pois relata a peregrinação do homem em busca da luz, peregrinação cujas dificuldades e angústias o poeta mostra com lucidez e compaixão para com os que caem no percurso.
               Rica em simbolismo, A Divina Comédia relata todo o processo de aceleração da evolução humana, desde a descida aos mundos inferiores até a contemplação do Divino, processo esse que é dividido nas três partes da obra.
              É importante notar que durante sua trajetória Dante nunca esteve sozinho. Sempre esteve acompanhado de um Mestre.
              Nas duas primeiras partes do poema, vemos Dante conduzido por Virgílio, símbolo da razão, do conhecimento, da sabedoria. É a etapa em que o homem necessita do apoio externo para que possa avançar no tortuoso caminho. Virgílio é o Mestre que auxilia o discípulo a atravessar essas etapas.
              Após essas fases (Inferno e Purgatório), o poeta caminha acompanhado por Beatriz, que representa o conhecimento dos divinos mistérios, e é conduzido até o Empíreo, onde, por um instante, ele desfruta da suprema visão da divindade. Assim, Beatriz é também o Mestre, embora nesta fase, o discípulo não necessite tanto do apoio externo. Aspira a algo mais, aspira a conquistar a Essência (a Divindade dentro de nós) perdida em tempos remotos. Beatriz, assim, convertida em ideia espiritual, personifica a sabedoria divina, com a qual a alma percorre as vias da razão até alcançar a graça e a união com Deus. Mais tarde, no Empíreo, Dante encontrará São Bernardo, seu derradeiro Mestre para a visão do inefável.
              É por meio dessa conquista que Dante entra no Reino dos Bem-Aventurados, onde habitam os Deuses, o Paraíso cristão, o Amenti egípcio, o Nirvana de Buda, o Valhala nórdico, o Olimpo grego. Diversas terminologias para exprimir o Inexprimível.
              Trilhar esse caminho das trevas para a luz é uma escolha pessoal. Cabe a cada um de nós fazê-la. Caso optemos por esse caminhar, como podemos fazê-lo de forma prática?
               Ora, o que é a ignorância, senão as trevas? E a sabedoria, senão a luz? Assim, a busca da Sabedoria leva-nos, certamente, à tão almejada luz, à tão preciosa conquista de nós mesmos. Buscar a Sabedoria é ser seu amigo. É ser Filósofo, pois seu o vocábulo significa, justamente, “amigo da sabedoria”.
               É apenas uma questão de escolha: dar ou não o primeiro passo!

BIBLIOGRAFIA

1. ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. São Paulo. Editora Nova Cultura. 1993.
2. BLAVATSKY, Helena Petrovna. A Chave para a Teosofia. Brasília. Editora Teosófica. 1991.
3. BLAVATSKY, Helena Petrovna. A Doutrina Secreta – vol. IV. São Paulo. Editora Pensamento. 1989.
4. BLAVATSKY, Helena Petrovna. Glossário Teosófico. Editora Ground. São Paulo. 2004.
5. CAMPBELL, Joseph. Para Viver os Mitos. Editora Cultrix. São Paulo. 2006.
6. ENTRE LIVROS CLÁSSICOS. Dante Alighieri – Da Divina Comédia Humana. Duetto Editorial. São Paulo e Portugal. 200_.
7. LESDBEATER, C. W. . A Gnose Cristã. Brasília. Editora Teosófica. 2001.



[1] Um dos pilares do septenário acropolitano.
[2]1.Elevação da alma na contemplação das coisas divinas; êxtase, arrebatamento, enlevo.
2.Interpretação das Sagradas Escrituras, ou de outras obras, como as de Virgílio, Dante, etc., que permite passar do sentido literal ao sentido místico.
[3] Agiota.
[4] Aquele que cometeu o pecado da simonia: venda ou compra de bens espirituais ou de objetos estreitamente ligados a um beneficio espiritual.
[5] Aquele que falta aos seus deveres ou obrigações por má fé.
[6] Orla
[7] Molduras sobrepostas que formam saliências na parte superior da parede, porta etc.
[8] Um dos pilares do septenário acropolitano.
[9]1.Elevação da alma na contemplação das coisas divinas; êxtase, arrebatamento, enlevo.
2.Interpretação das Sagradas Escrituras, ou de outras obras, como as de Virgílio, Dante, etc., que permite passar do sentido literal ao sentido místico.

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