Páscoa: liberdade e vida - Casa de Euterpe


Eis que é chegada a Páscoa.

Nessa época do ano, as vitrines dos shoppings e dos supermercados revestem-se de papeis laminados e encontram-se repletas de coelhos e ovos de chocolate de todas as cores e tamanhos. Há uma verdadeira festa para os sentidos.

Embora também ouçamos falar que Páscoa é renovação e renascimento, não associamos esses conceitos simbólicos com as atividades que vemos exteriormente, embora o evento tenha igualmente caráter religioso.

Ocorre que, como diversas outras datas que apresentam face simbólica, esta também, ao longo do tempo, teve seu significado transformado ou esquecido e, por isso, não vivenciado.

Não há problema em distribuirmos chocolates e ovinhos, nem em exaltarmos o coelho. O problema reside, principalmente, em não sabermos mais o que isso significa. E por não sabe-lo, não vivermos realmente a Páscoa, perdendo a oportunidade de trazer o símbolo para a nossa vida.

É óbvio que isso aconteça, pois não podemos viver aquilo que não compreendemos e isso ocorre, geralmente, por falta de reflexão. Falamos muito e refletimos pouco. Assim, passamos ao largo e na superfície das coisas, sem nunca chegarmos em sua acepção profunda e simbólica.

É prudente lembrar que todo símbolo tem um significo oculto, interno. Ocorre que não existe apenas uma única forma de entender e apreender esse sentido íntimo. O que existe é aquela que cada um esculpe a partir de suas próprias conclusões, depois de refletir seriamente acerca de um assunto. Existe, sim, aquilo que eu sou capaz de captar no momento e que pode ser diferente daquilo que você é capaz de perceber. Não há uma única verdade, mas a verdade de cada um.

Assim, quando reflito acerca da Páscoa, compartilho as referências que sou capaz de entender. Existem, certamente, outras.

Vamos lá.

A palavra Páscoa vem do hebraico pessach que significa passagem.

No Antigo Testamento, tem a finalidade de celebrar a passagem do povo de Israel da escravidão do Egito para a liberdade da Terra Prometida.

No Novo Testamento, significa a passagem da morte para a vida, por meio da ressurreição de Jesus de Nazaré, que havia sido morto na cruz. Jesus faz a sua passagem da morte para a vida plena.

Assim, de uma forma ou de outra, Páscoa é “passagem”. Passagem da escravidão para a liberdade. Passagem da morte para a vida.

Muito bem. Desvelar o símbolo é apenas o primeiro passo. O segundo é vivenciá-lo que forma prática e objetiva. Mas como podemos viver esse símbolo que é o advento da Páscoa? Como podemos experimentar seu íntimo significado que é transição, passagem e, em última análise, liberdade e vida? Sim, pois somente depois da vivência pessoal é que integramos seu significado, transformando-o em experiência e aprendizado. Um símbolo não vivenciado é um símbolo morto. Somos nós que lhe insuflamos vida.

Assim, Páscoa sem vivência, sem atitude ou ação é apenas mais uma data no calendário.

Refletindo acerca do tema, penso que tanto a passagem relativa à escravidão como a relativa à morte podem ser vividas que formas parecidas. Neste ponto, alguém pode perguntar: como experimentar essa mudança de estado se não sou escravo e tampouco estou morto?

Ora, será mesmo que não somos escravos? Será que não somos cativos de nossos desejos, instintos, paixões, medos, preconceitos, julgamentos, formas mentais... Em suma, será que não somos escravos de nós mesmos? Dificilmente, chegaremos a uma conclusão diferente dessa: somos, sim, escravos de nossas próprias criações.

Quanto à morte é preciso questionar: vivemos realmente? Ou somente existimos? Quando existimos biologicamente, deixamos de dar importância àquilo que realmente tem vida plena: nossa Alma. Ora, o existir biológico é comum aos homens e às amebas. Apenas o fazemos de forma mais requintada. Assim, o que nos diferencia da ameba não é o fenômeno biológico de nascer, crescer e morrer, mas a capacidade de fazer relação, a capacidade de entender que somos mais do que vemos, sentimos ou pensamos e a capacidade de entramos em contato com o Divino que há em nós.

Quando desprezamos essas capacidades típicas da Alma e priorizamos exclusivamente aquilo que está ao nosso redor ou em nosso exterior, não vivemos, mas existimos tal como as amebas.

Dessa forma, penso que precisamos de, o mais breve possível, fazer a passagem da escravidão do ter para a liberdade do Ser e da morte dos sentidos para a vida da Alma. Entendendo uma e outra coisa como equilíbrio entre o ter e o Ser e entre a satisfação dos sentidos e satisfação dos anseios da Alma, pois a total liberdade e a plenitude da vida ainda não amanheceram.

A senda do equilíbrio é longa e não se finaliza da noite para o dia. Requer mudanças de postura paulatinas e constantes. É um extenso caminho, mas que, como indica Lao Tsé, começa com o primeiro passo. Por isso, não precisamos nos preocupar com o quando chegaremos à totalidade da liberdade ou da vida. Nossa preocupação precisa residir no começar. E para começar, basta ter um planejamento objetivo e um forte querer.

Esse planejamento pode ser dividido em quatro etapas: física, energética, emocional e mental. Para cada um desses níveis é possível encontrar uma forma de escravidão e de morte e em cada um deles podemos relacionar o que precisa ser “passado”, alterado, modificado, para sermos livres e vivos (equilibrados).

Fisicamente, a excessiva atenção ao corpo que se revela, muitas vezes, em verdadeiro culto é a responsável por nossa escravidão. É claro que o corpo precisa de cuidados como higiene e exercícios para que tenha saúde e qualidade de vida. O que não é razoável é que a maior parte de nosso tempo seja empregada nesse rito. Quem age dessa forma é livre? Vive plenamente? Não. É apenas escravo de padrões estéticos fixados por mecanismos que não fazem mais do que reforçar essa escravidão. Vale a pena pensarmos nisso. Assim, aceitar que o físico é um elemento útil, mas não o único e nem o mais importante e dar-lhe apenas o que é justo, abre-nos os grilhões que nos mantém atados àquilo que é apenas temporal.

Em nível energético, uma das causas de nossa escravidão e morte é o consumismo. Por um lado, é preciso saber que energia é vida, portanto quando a direcionamos de forma pouco produtiva ou quando a desperdiçamos, desperdiçamos vida. Por outro lado, o dinheiro é uma energia e como tal deve ser utilizado de forma inteligente, pois, em última análise, dissipa-lo é dissipar vida. Saibamos, então, que o consumo imoderado, a atitude de comprar por comprar, de adquirir por hábito ou por vício, leva à escravidão pelos desejos nunca saciados.

A outra face dessa moeda é o apego exagerado a essa energia. Quantos são escravos de seus próprios bens? Quantos se valorizam por sua conta bancária? E quantos não usufruem os frutos de trabalho honesto e legítimo por não querer abrir não de determinada quantia?

Para sermos livres e termos vida, há necessidade de estabelecer um ponto médio entre essas duas situações. Lidar com o dinheiro de modo consciente para que, como declama Victor Hugo, ele sabia quem manda em quem é um de nossos passaportes para a liberdade.

Emocionalmente, as paixões descontroladas nos escravizam e matam. Quantas vezes nos vemos prisioneiros de sentimentos que nos fazem mal, que nos tornam ineficazes e infelizes, que nos limitam e impedem-nos de avançar no caminho escolhido? Quantas vezes nos sentimos “mortos” por causa de sentimentos de mágoa, raiva, ira, ciúme... E ainda assim insistimos em mantê-los? Quantas oportunidades perdidas por medo, insegurança e falta de autoestima? Essas situações são faces da verdadeira escravidão. Reciclar sentimentos, renovar emoções, transformando tudo em atos de amor, generosidade, caridade ativa e alegria é a receita para a liberdade e para a vida.

No âmbito mental, nossa escravidão e morte estão relacionadas ao teor de nossos pensamentos. Há entre nós aqueles que se comprazem em ver repetidas na tela mental, e inúmeras vezes, cenas que merecem ser esquecidas. Há, ainda, aqueles que criam circunstâncias que jamais existirão e se deleitam com elas em verdadeira auto hipnose. Aqueles vivem no passado; estes, em um futuro que não se realizará e todos deixam de apreciar o presente e, portanto, deixam de viver. Ou seja, morrem um pouco a cada vez e são servos de fantasmas. Alimentar a mente com leituras edificantes, cuidar para que os pensamentos sejam sadios e claros, evitar os pensamentos circulares e viver o momento presente é nossa passagem do cativeiro para a liberdade e da morte para vida.

Assim, uma vez que a Páscoa indica a passagem de um estado de escravidão e morte para outro de liberdade e vida, lembremos que os ovos, ainda que de chocolate, e os coelhinhos são símbolos de fertilidade e abundância. Dessa forma, sejamos férteis em disciplina física e em vitalidade energética; abundantes em amor e generosidade; e em pensamentos claros e benfazejos.

Nesse estado de espírito, caminharemos para a verdadeira liberdade, para a Terra Prometida da Alma, bem como renasceremos da cruz do ter para a plena e real vida do Ser e viveremos simbólica e diariamente a totalidade da Páscoa!


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